A obra magnânima
As más-línguas dizem que o príncipe D. Carlos foi apanhado pela mãe na biblioteca de Mafra a ler um volume sobre civilizações clássicas com gravuras de mulheres seminuas. Não se sabe se Maria Pia de Sabóia castigou o futuro rei de Portugal, que com o irmão mais novo costumava andar de patins naquela sala. O local de que se fala é enorme. As paredes estão cobertas por dois andares com estantes cheias de livros, cerca de 30 mil volumes sobre todas as áreas do conhecimento, a maioria encadernados em pele e com inscrições a dourado. A biblioteca do Palácio Nacional de Mafra é a imagem de João V, o rei que mandou construí-la: magnânima.
Os 30 mil volumes são apenas uma estimativa: jamais alguém contou as obras, até porque cada volume pode ter 100 lá dentro. Entre as peças mais valiosas está a Bíblia Complutense, de 1520, a primeira edição poliglota impressa – é composta por seis volumes e a maioria das poucas bibliotecas que a têm só possui os cinco primeiros, mas Mafra conseguiu também o último.
Outras obras raras são a primeira enciclopédia ou a Crónica de Nuremberga, de 1493, um dos primeiros livros impressos e um dos maiores volumes ilustrados da época. Os livros proibidos são cerca de 800 e incluem, por exemplo, uma raríssima edição do Corão. Para os ter na biblioteca era preciso autorização do Papa, e esta era sinónimo de grande prestígio. Todos estes livros são guardados por uma colónia de morcegos que come as traças e outros insectos destruidores de papel e madeira. Parece anedótico, para mais.
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Ao longo deste ano tem havido concertos, espectáculos de teatro e artes performativas, recriações históricas, exposições ou conferências, sempre com grande adesão do público. “O Palácio tem vindo a aumentar regularmente o número de visitantes nestes últimos anos e os eventos da programação do tricentenário têm estado cheios”, garante a responsável. Além dos eventos, o programa festivo inclui a recuperação dos dois famosos carrilhões e da pintura mural da sala do trono, assim como a melhoria dos acessos. João V mandou construir Real Edifício para cumprir um voto de sucessão. Além da biblioteca, o conjunto inclui um convento e uma basílica, ocupando no total 38.000 metros, com 1.200 divisões, 4.700 portas e janelas e 156 escadas, magnificência paga com o ouro que chegava do Brasil. Trata-se do mais importante monumento barroco do país, projectado pelo arquitecto e ourives alemão João Frederico Ludovice. A obra é decorada por uma notável colecção de esculturas e pinturas de mestres portugueses e italianos, bem como dois carrilhões com 98 sinos, os maiores daquela época.
O rei estava disposto a tudo para competir com as restantes cortes europeias. As encomendas de livros e peças de arte de grande valor eram uma espécie de recurso diplomático, um instrumento de promoção de Portugal. Conta-se mesmo que quando lhe disseram que cada carrilhão custava 400.000$00 réis, ele terá respondido: “Não supunha que fosse tão barato, quero dois!”
A candidatura inclui ainda o Jardim do Cerco e a Tapada de Mafra, espaço privilegiado de lazer e caça dos monarcas portugueses,especialmente nos reinados de D. Luís (1861-1899) e D. Carlos (1899 – 1908). Este último foi mesmo considerado um grande caçador, não tanto pelo número de animais que abateu, mas sobretudo pela forma como aliou a caça a outros saberes, já que era também um distinto pintor, naturalista e fotógrafo. A tapada tem mais de 800 hectares e é habitada por veados, javalis, raposas, coelhos-bravos, cágados e diversas cobras, entre outras espécies, algumas com grande valor conservacionista, como é o caso da águia-de-Bonelli e do bufo-real.