Ciência em Portugal: um ensaio sobre paixão e precariedade

Ciência em Portugal: um ensaio sobre paixão e precariedade

“Devido à grande instabilidade na investigação, cheguei a estar sem qualquer remuneração, mas tive de trabalhar na mesma, pois tinha objectivos a cumprir, os quais não podiam ficar em suspenso, com pena de prejudicar alunos, projectos e a instituição de investigação.” - Testemunho anónimo

Esta foi uma das muitas queixas recolhidas no inquérito que a ANBIOQ realizou a nível nacional focado em questões laborais e emprego científico em Portugal. Dos 300 cientistas inquiridos, 94,6% sente que o emprego científico em Portugal não é valorizado face a outros países. De um total de 2320 candidaturas a bolsas científicas reportadas pelos inquiridos, menos de 30% resultaram em aprovação.

“Tendo nós uma bolsa ou um contrato, não somos reconhecidos como um grupo ou classe trabalhadora. Descontamos o mínimo para a segurança social (regime voluntário), não temos qualquer subsídio (alimentação, férias ou até de transporte), ou seguro de saúde. A situação negativa é a falta de reconhecimento de que, obter um grau avançado como o doutoramento, é uma profissão e um trabalho, que está cheia de deveres, mas precária em direitos.” - Testemunho anónimo

Se por vezes a precariedade é encarada como subjectiva, os 70% dos investigadores que revelaram sentir-se numa situação muito precária não deixam margem para dúvidas. Este número sobe mais ainda, para 73,8%, quando consideramos estudantes de doutoramento. Na minoria dos investigadores com contrato de trabalho (38,8%), o sentimento de precariedade acentuada continua muito elevado (62,9%).

Relativamente à qualidade de vida, 53,5% dos inquiridos considera estar numa situação significativamente mais desfavorável do que a maior parte dos empregos financiados por fundos públicos. Quando considerando a duração e estabilidade da situação de trabalho, este número sobe para 70%. Contrariamente ao esperado, os inquiridos com contrato de trabalho apresentam valores ainda elevados (44,8% e 63,8%) revelando que o contrato de trabalho é um passo em frente, mas não único para dar condições de vida e trabalho aos investigadores portugueses. Estes factores tornam-se ainda mais preocupantes nos Bolseiros de Doutoramento (58,9% e 74,8%, respectivamente), o que mostra que, apesar de a percentagem de aprovação de candidaturas ter vindo a subir (tendo sido 49% no concurso divulgado pela FCT referente à atribuição de bolsas de Doutoramento no ano de 2021), o aumento do número de bolsas não é suficiente para conferir condições dignas aos investigadores em doutoramento.

“O facto de não ter um contrato afecta bastante o desempenho por causa da ansiedade e stress provocado por não saber quanto tempo vou ficar. (...) A situação do emprego científico em Portugal é muito triste e só faço isto porque adoro fazer ciência, mas pergunto-me, até quando?” - Testemunho anónimo

Um dos sentimentos mais firmemente captados por este inquérito foi o desinteresse e falta de apoio que os cientistas sentem pelo seu próprio país. 84,7% dos inquiridos não se vê ou não sabe se realizaria investigação em Portugal a longo prazo. Da minoria que consegue perspectivar um futuro em Portugal (somente 14,4%), uma grande percentagem (69,8%) tem contrato de trabalho.

“A viciação dos concursos institucionais e a falta de um projecto a longo prazo para a ciência em Portugal” - Testemunho anónimo

90% dos inquiridos considera a transparência como um factor de elevada importância nos diferentes processos concursais/contratuais. 94% dos investigadores considerou haver má
gestão do financiamento para o emprego científico, sendo apontados como principais culpadas as entidades governamentais (81,9%), a FCT (64,9%) e as instituições e unidades de investigação (41,8%); tal como evidenciado pelos valores apresentados (os inquiridos podiam seleccionar mais do que um responsável).


Demografia da população de inquiridos


Os valores apurados foram obtidos a partir de uma amostragem de 300 investigadores que responderam a um inquérito online durante o mês de Maio, divulgado através das redes sociais da ANBIOQ e por outras instituições de ensino/investigação. Da população de inquiridos 53,8% são Mestres, 36,5% Doutorados, 8,7% Licenciados e 1% Outro. Destes, 38,8% têm contrato de trabalho, 35,8% Bolsa de Doutoramento, 8% Bolsa de Mestre, 6,4% encontram-se desempregados, 4% em estágio não remunerado, 2,7% com Bolsa de Licenciado, 2% com Bolsa de Pós-Doutoramento, 1,3% com Bolsa de Técnico e 1% com outras bolsas. 85,1% dos investigadores é financiada por entidades Nacionais Públicas, 5,7% por entidades Nacionais Privadas, 5,0% por entidades Internacionais Privadas e 4,2% por entidades Internacionais Públicas. A ANBIOQ encontra-se disponível para esclarecimento acerca dos dados obtidos.