100 anos após o seu nascimento, recordemos Saramago - Do nordeste ao noroeste, duro e dourado

100 anos após o seu nascimento, recordemos Saramago - Do nordeste ao noroeste, duro e dourado
Castelo de Bragança I Fotografia: Tiago Canoso

Em Miranda do Douro "ninguém seria capaz de se perder", constatou Saramago ao entrar na cidade transmontana. Depois de ensaiar um sermão aos peixes do rio que é de dois países e de contemplar, da janela do carro, um singelo quintal e o seu estendal de roupa, Saramago foi conhecer o Menino Jesus da Cartolinha, herói local das lutas da Restaura­ção: vendo Miranda cercada, faminta, perdida, um garoto avançou a gritar às armas e à cora­gem, arrastando consigo os compatriotas, que "vão-se aos Espanhóis como se malhas­sem em centeio verde".

Miranda do Douro é uma terra de lendas e tradições an­ cestrais. Os Pauliteiros são homens ou mulheres que "lu­tam" com paus e dançam ao ritmo da gaita-de-foles, da caixa e do bombo, vestindo enáguas e camisas de linho brancas, coletes com lenços coloridos sobrepostos e cha­péus negros com flores coloridas. Cumprem um ritual que terá origem na Idade do Ferro, uma espécie de dança guerreira que mistura várias influências, dos greco-roma­ nos aos repovoadores do reino de Leão.

Na cidade mal se fala o mirandês, segunda língua oficial de Portugal, há muito acantonada em pequenos centros mas que lentamente regressa pela boca da gente que chega das aldeias. A toponímia também já aparece em mirandês, assim como os painéis informativos dos principais monu­mentos, e de quando em quando é editado mais um livro nessa língua. A capa de honras é outra das marcas de Mi­randa do Douro, peça emblemática de uma região onde se diz que há "nove meses de inverno e três de inferno" mas que tem, para contrapor, a sublime paisagem do Parque Natural do Douro Internacional. Nas declivosas vertentes ou arribas, o rio torna-se canhão fluvial e é o abrigo per­feito para diversas espécies de avifauna, como a águia-de­-bonelli, a cegonha-preta ou o abutre-do-Egipto, que com sorte podemos contemplar no voo sobre o precipício.

A viagem é o que fazemos dela. As escolhas são quase sempre relativas e a lógica um pormenor. Estamos a fazer esta de norte para sul, mas de Miranda do Douro subimos para Bragança, queremos ver a Igreja de S. Vicente, onde, reza a tradição, casaram D. Pedro I e Inês de Castro. Por Saramago conhecemos outra história trágica, a do soldado José Jorge, enforcado por um crime que não cometeu. Te­mos vontade de ir a Vinhais, mesmo ao lado, provar os enchidos da Feira do Fumeiro. Temos que esperar até fevereiro do próximo ano. Voltamos a subir, agora para Rio de Onor, essa pequena aldeia comunitária onde há casa­ mentos sem fronteira e onde ainda se fala o ruidenore, di­ alecto quase extinto.